MARCADA

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Algumas pessoas não acreditam em maldição – eu também não acreditava –, mas como explicar o que aconteceu naquele entardecer? Desde então, vivo à espera da morte a cada instante. Todos nós sabemos que morreremos um dia. Mais cedo ou mais tarde, ninguém mais nos verá caminhando por aí, não ouvirá mais nossa voz nem perceberá qualquer sinal de nossa presença, porquanto simplesmente deixaremos de existir entre os vivos. A morte é a única certeza que temos em nossa vida. Talvez por isso mesmo a maioria prefira ignorá-la e fazer de conta que ela só chegará no momento certo, quando já estivermos cansados de viver, até então, goza-se a vida. Mas não é bem assim. Quisera eu continuar a pensar como os outros e esquecer que sou mortal, mas não consigo. A todo instante, a qualquer desequilíbrio ou incidente, penso que chegou a minha hora. Viver dessa forma é não viver. É como se a morte já houvesse chegado e entrado em minha mente, donde sairá para levar-me por inteira. Tem sido assim desde que entramos naquela casa.
Ela ainda existe. Está lá escondida no meio da mata, ninguém percebe sua existência. Nem sempre foi assim. Antes, era apenas um casebre situado à beira de uma estrada carroçável, onde vivia uma família pequena e muito pobre. Por seu terreiro, passavam, todos os dias, dezenas de pessoas, a pé, de carroça ou nos caminhões que iam para a cidade. Entretanto, com a construção da rodovia no outro lado da lagoa, a velha estrada ficou inutilizada. Ninguém mais queria passar por suas grotas que rasgavam a terra vermelha como se fossem arrastar as pessoas para o inferno. Nesse tempo, os moradores da casa foram embora e ela ficou abandonada. Depois que o velho sulino comprou aquelas terras e mandou cercá-la, a estrada então perdeu o contato com o resto do mundo. O mato cresceu, os arbustos tornaram-se árvores, escondendo da vista de todos qualquer sinal do casebre. Dizem que foi nessa época que a velha Salomé mudou-se para lá.
Era uma velha muito magra, corcunda e com poucos dentes, todos podres. Muito arredia, só aparecia no vilarejo uma vez por mês para fazer algumas compras, as quais pagava com ervas medicinais e rezas – dizia que tirava mau-olhado, quebranto e curava das doenças comuns. Quando punha os pés no vilarejo, as crianças corriam todas para dentro de casa, pois os pais – na verdade, as mães – diziam-lhes que ela pegava criancinhas.
Cresci com medo da velha Salomé. Quando me disseram que ela fora embora, pude viver aliviada a minha infância, mas nunca deixei de me sentir atraída pela velha casa abandonada no meio do mato. Meu maior desejo era, um dia, pular a cerca do velho sulino e entrar naquele casebre. Foi o que propus a minhas primas quando eu tinha quinze anos.
Éramos três adolescentes cheias de vida. Celina, minha prima e melhor amiga, era muito branca e gorda. Tinha o rosto cheio de sardas e sorria o tempo todo. Já Caterina, sua irmã, era menos simpática, resmungona, porém mais corajosa. Numa tarde de domingo, haveria a missa do padroeiro do vilarejo. Todos estariam na igreja, menos nós três, que resolvemos fugir para saciar nossa curiosidade.
Quando o sino deu as últimas badaladas, fui à casa das meninas – meus tios já haviam ido à igreja e elas lhes prometeram que iriam logo em seguida –, de lá, pela porta dos fundos, saímos em direção à mata. Eram umas quatro e meia. O sol brilhava radiante, nem vimos as nuvens escuras que surgiam no nascente. Passamos ágeis pelo pasto cheio de desmanto, que grudavam nas nossas saias e arranhavam nossas pernas. Apesar disso, ríamos à toa, tomadas pelo prazer que nos infligem as coisas proibidas. Só Caterina reclamava, mas menos do que eu imaginava que faria.
Chegamos à cerca que isolava a estrada e vimos, pela primeira vez, aspectos da casa. Lá estava ela com suas paredes brancas por trás dos galhos retorcidos das juremas. Sorri ao perceber que ela ainda existia. Fui a primeira a pular acerca. Minha saia quase se rasgou numa estaca, mas pus ilesa os pés do outro lado. Caterina ajudou Celina a transpor o obstáculo – pensei que a cerca fosse abaixo com o peso, mas deu tudo certo. A saia de Caterina, porém, não teve a mesma sorte que as nossas. Ao ouvirmos o barulho seco do tecido rasgando-se no topo da estaca, eu e Celina franzimos a testa e esperamos o choro da outra, mas, para nossa surpresa, ela apenas torceu os lábios vermelhos, dizendo que a saia estava mesmo velha.
Caminhar entre as juremas era difícil, precisávamos nos curvar e nos esquivar dos galhos espinhosos. À medida que caminhávamos em direção ao casebre, meu coração batia mais forte. A morada isolada da Salomé, a velha que marcou minha infância com sua aparência de bruxa e sua voz estridente, finalmente estava a poucos metros de mim. Havia anos que ninguém pisava ali. Como estaria a casa? Haveria ainda coisas de Salomé? Como seria por dentro? Quantos cômodos? Haveria móveis? Um grande mistério de minha infância estava prestes a ser revelado e isso me punha muito ansiosa.
Eu ia na frente e minhas primas atrás. Celina não parava de dizer gracinhas, supor coisas, tais como a presença da velha na casa ou a do velho sulino, que era o dono das terras; eu, porém, tinha certeza de que tudo estava deserto. A velha Salomé não vivia ali fazia muito tempo e o velho do sul estava na missa, como todos os outros. Caterina, silenciosa, adiantou-se e pôs-se ao meu lado. Juntas, erguemo-nos diante do casebre, que agora parecia assustador.
À frente, havia uma cerca baixa, com muitas falhas, que, no passado, delimitava um pequeno jardim, do qual só restava um pé de romã. O chão estava coberto de folhas secas e matos. O silêncio era sepulcral. Caterina parecia mais curiosa do que eu. Enquanto eu observava as rachaduras nas paredes e um alpendre baixo no oitão, ela caminhou para a frente da casa e nos chamou sussurrando. Não havia motivos para sussurros, pois não incomodaríamos ninguém ali. Fui ver o que lhe chamou a atenção e me arrepiei toda ao ver uma cruz preta, feita de tisna, na tábua da porta. Sob a cruz, uma inscrição em latim que, na época, eu não fazia ideia do que era: MANE LONGINQVE. Hoje, sei muito tarde o que significa. Era uma advertência: Fique longe! Poderia ser que a velha Salomé houvesse escrito aquilo para protegê-la de alguma doença. A lepra fora uma ameaça constante ao povo de nossa vila. 
Na frente da casa, havia, além da porta, uma janelinha tosca, em cuja tábua também havia uma cruz de tisna. Porta e janela estavam bem fechadas, de modo que, por ali, não haveria a menor possibilidade de entrarmos. Resolvemos caminhar pelo outro oitão, no qual havia duas janelinhas, ambas fechadas e com uma cruz preta desenhada.
A mata de juremas e outros arbustos espinhosos nos observava inerte. Notáramos que o sol se escondera por trás de uma nuvem espessa e que a escuridão desceu sobre o lugar, mas não demos importância, nossa curiosidade era maior.
Ao chegarmos aos fundos da casa, onde havia duas colunas de carnaúba sustentando um telhado abaulado, notamos que a porta estava semiaberta.
- Tem coragem? – perguntou-me Caterina, olhando com os olhos cheios de curiosidade.
Não disse nada, apenas dei um passo à frente. Celina ficou bem atrás de mim, segurando de forma irritante o meu braço. Quando Caterina tocou na porta, empurrando-a para trás, um gato preto correu por entre suas pernas fazendo-nos todas dar um grito pavoroso.
O gato correu para a mata, parou e ficou nos observando com espanto.
Minhas pernas estavam trêmulas. Celina pediu para irmos embora, mas Caterina argumentou que, já que estávamos ali, que fôssemos até o fim. O silêncio se fez novamente. Abrimos a porta e entramos na casa, deixando a pouca luz entrar na cozinha escura e suja.
– Vamos embora! – disse Celina, dando um espirro – Está escurecendo e eu estou com medo.
– Já vamos! – disse a outra – Tenha calma.
A casa estava muito suja, com muita poeira, cacos de telha e teias de aranha, mas ainda tinha alguns móveis: uma mesa torta sobre a qual descansavam algumas panelas gastas, uma quartinha, xícaras e copos de alumínio. Numa das paredes, um caco de torrar café e uma colher de pau. Num canto, um fogão a lenha. Lagartixas deslizaram céleres pelas paredes e pelo chão cheio de saliências, enchendo-nos de pavor.
Saía-se da cozinha por uma porta que dava para um corredor estreito e ainda mais escuro. No corredor, havia uma porta para um quarto. Não resistimos à curiosidade, apesar do cheiro forte de casa velha e de poeira, que começava a ficar insuportável. Então entramos no quarto, mas não víamos nada, a não ser um fio de luz que vinha de fora e passava por entre as tábuas da janela.
Com a mão cobrindo o nariz, Caterina caminhou até a janela e a abriu. A luz vespertina nos revelou uma rede armada num canto do quarto, com as abas cobrindo o corpo só de pele e osso da velha Salomé, cujo crânio, com seus dentes podres, parecia nos sorrir. Do couro enrugado sobre os ossos pendiam os cabelos brancos e grossos.
Não aguentando a visão do cadáver, Celina fez o que simplesmente não poderia fazer ali: desmaiou como um saco de batatas sobre o chão de poeira. Foi no mesmo instante em que morcegos – não sei quantos – voaram circularmente sobre nós, fazendo Caterina dar um grito, perder o equilíbrio e tocar na velha rede que só esperava um movimento leve para rasgar-se, porquanto estava apodrecida pela decomposição do corpo. Este, caindo pelo rasgão do tecido, espatifou-se no chão, liberando vermes e um fedor insuportável.
Um raio iluminou toda a mata, parecia que havia caído ali perto. Não demorou muito para que um trovão ensurdecedor nos fizesse tremer e nos encolher sobre Celina desmaiada.
Uma chuva grossa e repentina caiu sobre a mata, agravando nossa situação. A noite chegou mais cedo. Estávamos completamente apavoradas e arrependidas da aventura, mas era demasiadamente tarde.
Celina despertou e deu novos gritos. Tentamos, debalde, acalmá-la. Ela, meio trôpega, levantou-se e saiu correndo. Não havia quem a segurasse. Eu e Caterina tentamos alcançá-la, mas minha prima, que corria um pouco atrás de mim, gritou caindo sobre o mato. Uma cobra a havia picado.
– Caterina! – gritei ao vê-la contorcer-se agarrada ao tornozelo.
– Corre! Pede ajuda!
Mal Caterina fechou a boca, um novo grito cortou a chuva. Era Celina, que, na pressa por pular a cerca, estrepou-se mortalmente. Na queda, seu pescoço chocou-se contra uma estaca pontiaguda que lhe atravessou a garganta. Sem saber a gravidade do ferimento, corri para socorrê-la, mas só pude gritar ao ver o sangue escuro e abundante misturar-se com a água da chuva e tingir todo o amarelo do vestido.
Corri novamente para socorrer a outra prima. Não sei que espécie de cobra a havia picado, mas deveria ser de um veneno poderoso, pois Caterina tremia-se toda, tendo convulsões. Sua boca, por onde escorria uma espuma grossa, tentava dizer-me para correr, mas não conseguia.
Olhei novamente para a maldita casa. Nesse instante, um relâmpago a iluminou e pude ver a velha Salomé de pé, sorrindo com seus dentes cariados, a um metro de mim. No relâmpago seguinte, já não a vi mais.
Desesperada, caí sobre o corpo de minha querida prima, chorei e gritei com o peso da culpa e do arrependimento, enquanto a chuva só fazia engrossar sobre mim e a escuridão me envolvia por fora e por dentro. Quando parei de ouvir o bater do coração de Caterina, decidi voltar para o vilarejo e pedir ajuda.
Ninguém consegue imaginar o horror que foi deixar minhas primas ali, sob aquela chuva, pular cerca e atravessar o pasto cheio de carrapichos, sem enxergar um palmo diante do nariz. Cheguei ao vilarejo quando a missa estava acabando e gritei para que todos ouvissem o que tinha acontecido. Com lanternas e muito barulho, uma multidão correu para o local das mortes, tendo-me como guia e como uma garota louca que perdeu a missa para encontrar a morte. Meus tios me amaldiçoaram e meus pais quase me mataram com sermões ao longo do trajeto de volta à velha casa.
Hoje vivo enclausurada em meu quarto quase que por vontade própria. Ninguém me faz visitas. Não tenho mais amigas. Depois que descobri o significado daquela frase em latim, sinto-me perseguida pela morte. Aquela velha, não sei por quê, escolheu morrer sem o conhecimento de ninguém e não queria que ninguém a importunasse, mesmo após sua morte. Eu e minhas primas, levadas pela curiosidade, invadimos aquele casebre que, na verdade, era o jazigo da velha, o qual não deveria ser importunado. A morte foi ágil e pegou logo minhas queridas primas, deixando-me para depois, ou, quem sabe, dando-me o pior dos castigos.  

Jards Nobre, professor, escritor, membro da Academia Quixadaense de Letras.

DAVI M. NOBRE

Colaborador EEM Coronel Virgílio Távora

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